Entenda a divisão de responsabilidade na alimentação

À medida que os bebês se tornam crianças pequenas, é comum notar uma mudança drástica nas refeições. Do nada, você se pega pensando: “Mas como assim? Ele amava essa comida quando era bebê, por que está recusando agora?”. Bem, hoje quero abordar um tema muito importante: a divisão de responsabilidade.

É bom lembrar que como mencionado no guia Nutrir para o Crescer no app Garfinho, entre os 2 e 6 anos o ritmo de crescimento diminui, e chega a ser inferior aos dois primeiros anos de vida. Portanto, há diminuição das necessidades nutricionais e, consequentemente, diminuição do apetite.1

A natureza e o corpo da criança são muito sábios: imagina o peso e altura que a criança teria se seguisse o ganho do primeiro ano de vida? Seria como ter uma criança de 3 ou 4 anos com pelo menos 40kg! Não faz sentido, né?

Além disso, em termos de desenvolvimento, sabemos que crianças entre 2 e 5 anos podem apresentar maior recusa alimentar. Então pode ser que fatores biológicos e fisiológicos estejam aumenta essa recusa.

Existe um termo pra isso e se chama neofobia alimentar.

A neofobia alimentar é definida como medo de experimentar e explorar novos alimentos (ou alimentos que não lhe parecem conhecidos e familiares).2

Pode acontecer até com alimentos que eram os favoritos quando eram bebês.

Em uma perspectiva biológica, algumas teorias indicam que as crianças pequenas desenvolvem neofobia alimentar como uma proteção para “minimizar os riscos de comer alimentos prejudiciais à saúde”. 2

Nessa fase, existe uma necessidade natural de mostrar sua própria autonomia corporal (geralmente acompanhada da palavra NÃO). Unindo isso com a neofobia, é bem provável que muitas famílias se deparam com novos desafios durante as refeições, com situações completamente diferentes de quando tinham um bebê em casa. 

É um momento em que a criança se comporta de maneira imprevisível com a alimentação. Inclusive, pode ser diferente de um dia pro outro, ou de uma refeição para outra. Se os pais ou cuidadores, não entenderem que isso é passageiro e reagirem de maneira muito dura, esse comportamento pode se transformar em um distúrbio alimentar real no futuro e durar mais do que “só uma fase”.1 

A boa notícia é que existe um manual de boas práticas de alimentação pediátrica desenvolvido pela nutricionista Ellyn Satter, que traz diretrizes para ter menos estresse nas refeições e ajudar as crianças a evoluir e comer de acordo com as necessidades do corpo.

Esta diretriz se chama Divisão de Responsabilidade e vai te ajudar a ter em mente qual é o seu papel como cuidador e qual o papel da criança na hora da alimentação, para possibilitar refeições mais tranquilas.3

Quando os papéis são bem definidos, todos conseguem aproveitar o momento e explorar a comida juntos, em família.

Responsabilidade dos pais

  1. Qual comida é servida
  2. Quando a comida é servida
  3. Onde a refeição é feita

Responsabilidade da criança

  1. Decidir o que e quanto vai comer

Você não tem que ficar servindo lanchinhos substitutos! A Divisão de Responsabilidade te ajuda a ensinar as crianças a comer os alimentos que a família normalmente come, sem ter que sair correndo pra fazer uma “refeição especial” à parte só porque algo no cardápio não agradou.

Seu papel de cuidador na divisão de responsabilidade

1. Tenha uma rotina para o momento das refeições

Não deve ser uma rotina engessada em termos de horários, mas programe-se em torno da hora das refeições e lanches.

As crianças se beneficiam da rotina. Ter uma rotina previsível de refeições e lanches permite que eles saibam que existem outras oportunidades para comer depois, caso não sintam fome em uma refeição.

Dica extra na divisão de responsabilidade:

Dar um espaço de 2 a 4 horas entre as refeições dá ao seu filho a chance de perceber a sensação de fome e chegar à próxima refeição pronto para comer.

Caso a criança tenha comido “mais do que de costume” em uma refeição, pode ser necessário mais tempo que o usual para demonstrar interesse na próxima refeição. E caso ela não tenha comido na refeição anterior (exceto situações de dor, desconforto e doença), pode ser que a fome chegue um pouco antes do horário habitual.

Lembre-se que os horários podem ser flexíveis. As crianças se sentem seguras e protegidas quando têm uma rotina consistente de refeições previsíveis. Mas os horários precisam ser apenas parecidos, não fixos e rígidos. É possível fazer adaptações quando necessário.

2. Tenha um cardápio planejado

Planeje servir uma variedade de alimentos que inclua tanto os favoritos como os novos alimentos a oferecer.

Idealmente, o objetivo é que seu filho coma os mesmos alimentos que sua família, mas também mantenha a curiosidade sobre novos alimentos.

Sirva 1 alimento favorito, 1 alimento que ele gosta quase sempre (pelo menos 50% do tempo) e 1 comida “nova”.

divisao do prato

Mesmo que ele coma apenas a comida favorita, encontre maneiras de adicionar variedade aos favoritos com molhos e outras formas de preparo para evitar que a criança se canse também do alimento favorito. Leia mais sobre isso no guia do app Garfinho “Como montar o prato”.

3. Onde a comida é servida

Sirva as refeições em um local adequado para comer. Tente manter as refeições longe de distrações*, como TV ou tablets, que podem levar a uma alimentação mais negligente e desconectar a criança de seus sinais de fome e saciedade.

*As exceções: músicas tranquilas no ambiente (que não deixem a criança agitada) e brinquedos que façam parte do momento da refeição (por exemplo, o brinquedo vai comer e interagir com a criança) não entram nessas distrações. Nesse caso, não seriam distrações, pois não é a mesma coisa que usar uma música para a criança “comer enquanto dança”, ou usar um brinquedo para a criança abrir a boca sem se dar conta do que está comendo.

Dica extra na divisão de responsabilidade:

Mantenha as refeições divertidas! Às vezes, apenas mudar de ambiente já pode criar menos pressão e ajudar sua família a se conectar com a comida.

Pense se há diferenças em como seus pequenos comem ao mudar os lugares de sentar à mesa, deixar uma mesinha mais baixa e de mais fácil acesso a eles ou até mesmo em fazerem refeições em outros ambientes da casa (na varanda ou com uma canga no chão, como se fosse um piquenique).

O papel do seu filho na divisão de responsabilidade

1. Determinar se ele irá comer a comida que você ofereceu

Falar é mais fácil do que fazer, especialmente quando você tem que lidar com seletividade alimentar.

No entanto, para realmente ajudá-los a promover uma relação saudável com a comida, é essencial permitir que as crianças comam (ou não) o alimento oferecido.

Isso ensina muito sobre a autonomia e os ajuda a se conectar com seus sinais de fome e saciedade.

Lembre-se: você está oferecendo várias oportunidades para comer ao longo do dia e eles terão outras chances de comer!

2. O quanto vai comer da comida oferecida

Isso pode ser ainda MAIS DIFÍCIL do que o papel anterior nas refeições, mas é igualmente importante.

Para preservar a capacidade de ouvir seus corpos e comer intuitivamente, é preciso permitir que as crianças não comam a comida oferecida se não estiverem com fome.

E isso deve ser respeitado tanto quando a criança comeu “super pouco” (pelo seu ponto de vista), bem como quando comem algo só para “agradar” (lembrando que a criança não precisa e nem deve comer pensando apenas em agradar o adulto, ou em ganhar algo em troca).

É também preciso permitir que eles comam mais, se ainda sentem fome (caso ainda haja comida disponível).

A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) recomenda abandonar a mentalidade de “limpar seu prato” para permitir que as crianças ouçam o que seus corpos precisam.1

“O ideal é oferecer uma pequena quantidade de alimento e perguntar se a criança deseja mais.”

Nos anos 1980-90, a orientação era de que as crianças deveriam “comer tudo” o que estava no prato, afinal, era um momento de carências nutricionais, com muitas crianças desnutridas e o mais importante era reduzir as deficiências nutricionais e o risco de óbito. 

Então, infelizmente, era muito comum nossos pais nos forçarem, ameaçarem ou insistirem para que comêssemos, afinal, naquele momento era muito mais importante manter a criança viva do que qualquer outra coisa.

Hoje vivemos em outras circunstâncias (dados de 2020 e 2021 mostram que 30% das crianças até 12 anos estão com excesso de peso – e já com doenças associadas, como diabetes tipo 2, pressão e colesterol alto) e que mais de 55% dos adultos vivem com sobrepeso.

Cada dia que passa, mais estudos sobre o comportamento e transtornos alimentares surgem, nos mostrando que precisamos focar não só na qualidade e quantidade que a criança come, mas também no porquê e como se come.

E uma dica de ouro do pediatra Carlos González é:

Se toda vez que você coloca comida no prato seu filho sobra metade do foi colocado, significa que você está colocando o dobro do que ele precisa. E não é ele quem precisa comer mais, mas sim você quem precisa colocar menos comida e respeitar sua fome e saciedade.

As crianças vão comer quantidades diferentes em cada refeição, o que é bastante comum. Tente não olhar somente cada refeição individual, pois as crianças atingem suas necessidades nutricionais ao longo de vários dias.

As nuances da divisão de responsabilidade

Os pais precisam estar tranquilos com as crianças comendo mais ou menos do que eles acham que precisam comer.

Precisamos entender que não podemos sentir a quantidade exata de fome e saciedade que o corpo deles está tendo.

Além disso, é bom ter em conta que se aparecermos com uma rotina de refeições previsível e consistente, eles vão comer exatamente o que seu corpo precisar.3

Se nos sentirmos bem ao servir a comida, precisamos estar igualmente satisfeitos com a criança comer, ou não. Isso significa não subornar, recompensar, ou elogiar o quanto se come.

Duas coisas para se ter sempre em mente sobre a Divisão de Responsabilidade

1. As dicas deste guia precisam estar alinhadas a uma boa alimentação da família. A forma como os pais se alimentam tem importância fundamental no comportamento alimentar dos filhos.1

2. Geralmente, quanto mais neofóbica a criança, mais os pais usam a persuasão, recompensa, condições e o preparo de alimentos especiais. Porém, quanto mais pressionamos a criança, menor será seu prazer e menos ela irá comer.

Isso porque ela irá buscar alternativas para mostrar que está incomodada e que deseja ser ouvida, intensificando a recusa e aumentando a frustração do cuidador.6

É possível estabelecer limites com amor tendo um plano flexível em torno das rotinas de refeições e da comida oferecida.

Atitudes compreensivas e amorosas (se perguntar se no lugar da criança você estaria confortável e tranquilo com a situação, ou o que gostaria que fizessem com você) em relação à alimentação das crianças podem proteger da dificuldade alimentar.6

Para saber sobre a divisão de responsabilidade na prática, baixe gratuitamente o nosso aplicativo Garfinho, disponível para Android e IOS!

Referências

1. Sociedade Brasileira de Pediatria. Departamento de Nutrologia. Manual de orientação para alimentação do lactente, do pré-escolar, do escolar, do adolescente e na escola. São Paulo: Sociedade Brasileira de Pediatria, Departamento de Nutrologia, 2 ed.2008. https://www.sbp.com.br/fileadmin/user_upload/pdfs/14617a-PDManualNutrologia-Alimentacao.pdf

2.Torres, T. O., Gomes, D. R., & Mattos, M. P. (2020). FACTORS ASSOCIATED WITH FOOD NEOPHOBIA IN CHILDREN: SYSTEMATIC REVIEW. Revista paulista de pediatria : Órgão oficial da Sociedade de Pediatria de São Paulo, 39, e2020089.
https://doi.org/10.1590/1984-0462/2021/39/2020089

3. Ellyn Satter Institute: Raise a Healthy Child Who is a Joy to Feed. Retrieved March 2022 from: https://www.ellynsatterinstitute.org/how-to-feed/the-division-of-responsibility-in-feeding/

4. Savage, J. S., Fisher, J. O., & Birch, L. L. (2007). Parental influence on eating behavior: conception to adolescence. The Journal of law, medicine & ethics : a journal of the American Society of Law, Medicine & Ethics, 35(1), 22–34. https://doi.org/10.1111/j.1748-720X.2007.00111.x

5. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Departamento de Promoção da Saúde. Guia alimentar para crianças brasileiras menores de 2 anos – Brasília: Ministério da Saúde, 2019.

6. MARANHÃO, Hecio de Sousa et al. DIFICULDADES ALIMENTARES EM PRÉ-ESCOLARES, PRÁTICAS ALIMENTARES PREGRESSAS E ESTADO NUTRICIONAL. Rev. paul. pediatr., São Paulo, v. 36, ed. 1, p. 45-51, 2018. DOI https://doi.org/10.1590/1984-0462/;2018;36;1;00004. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rpp/a/N54HLQjVHFGBNt8p9RtkYSB/?lang=pt#. Acesso em: 18 maio 2022.

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Jessica Sanguedo | Nutricionista

Sou nutricionista (CRN4 - 20102053), internacionalista e mãe de um bebê que é meu maior caso de sucesso com BLW! Também sou pós-graduada em nutrição clínica pela UFRJ, com cursos de seletividade alimentar e nutrição infantil. Realmente acredito que a nutrição muda vidas!

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